A fome grave, um grito de revolta,
uma mão assassina

Catarina Eufémia, <br>de José Casanova

Domingos Lobo

A his­tó­rica de um povo, o seu pos­tu­lado he­róico, mesmo quando in­cide sobre acon­te­ci­mentos que os his­to­ri­a­dores, por dis­tracção ou pre­con­ceito ide­o­ló­gico en­tendem de re­gisto cir­cuns­tan­cial e, por­tanto, sem lugar nos com­pên­dios aca­dé­micos, é que nos torna dignos de per­tença a um de­ter­mi­nado es­paço, a um lugar, a uma cul­tura, aos idi­os­sin­crá­ticos signos da nossa iden­ti­dade, à sin­gu­la­ri­dade que nos es­ta­be­lece en­quanto co­mu­ni­dade, en­quanto País. Só no pleno acervo desses si­nais, no seu con­creto e do que neles, com eles in­tuímos, nos es­tru­tu­ramos e nos sa­bemos sin­gu­lares.

A língua e o modo como a usamos e vi­vi­fi­camos é o me­ca­nismo, o ins­tru­mento através da qual a me­mória e os signos cul­tu­rais que ela trans­porta se trans­mitem de ge­ração em ge­ração.

Este livro de José Ca­sa­nova sobre a mais ge­nuína das nossas he­roínas po­pu­lares, a que por ven­tura mais fundo tocou o co­ração do nosso Povo, num misto de re­volta e ad­mi­ração – ad­mi­ração pela épica co­ragem com que Ca­ta­rina en­frentou os es­birros; re­volta pelas cir­cuns­tan­cias trá­gicas do seu as­sas­si­nato (Ca­ta­rina Eu­fémia é, por essas cir­cuns­tan­cias, uma he­roína trá­gica como An­tí­gona o foi) –, é um livro trans­pa­rente, lú­cido, exi­gente e raro na forma como se or­ga­niza. O autor não se li­mita a traçar a bi­o­grafia de Ca­ta­rina Eu­fémia se­gundo o fi­gu­rino geral e de co­nhe­ci­mento comum da cam­po­nesa de Ba­leizão, vai mais longe e mais fundo não apenas na função de lhe traçar um per­curso, mas in­ves­tindo, com po­de­rosos e in­con­tes­tá­veis dados fac­tuais, contra certos «his­to­ri­a­dores» que, na ce­gueira per­se­cu­tória, im­buídos do mais pri­mário re­a­ci­o­na­rismo ide­o­ló­gico, con­tor­naram dados, es­ca­mo­te­aram factos: José Ca­sa­nova repõe a ver­dade, torna claro o que ou­tros ten­taram ocultar. E faz mais: vai ao cerne da ver­dade his­tó­rica para en­qua­drar os factos nas cir­cuns­tân­cias sócio-po­lí­ticas que os de­ter­mi­naram: firme, di­a­léc­tico, pre­ciso.

Im­por­tantes, dado que é bom não es­quecer, dado que quando ador­me­cemos em de­mo­cracia po­demos acordar em di­ta­dura, pelo en­qua­dra­mento po­lí­tico e pela pre­cisão his­tó­rica, os ca­pí­tulos em que o autor re­fere a Re­forma Agrária nos campos do Alen­tejo, «a mais bela con­quista de Abril».

Sa­bemos da es­crita de José Ca­sa­nova, do seu verbo se­guro, da acu­ti­lância das suas afir­ma­ções, da ca­pa­ci­dade ar­gu­men­ta­tiva das suas aná­lises: este texto contém, na apa­rente sin­ge­leza formal com que este en­saio evo­ca­tivo de um dos sím­bolos mai­ores da re­sis­tência se es­tru­tura, o as­ser­tiva o olhar do autor de O Ca­minho das Aves, e o rigor, a aná­lise dos ele­mentos fac­tuais (dos es­critos de Cu­nhal, a de­poi­mentos de tes­te­mu­nhas dos acon­te­ci­mentos, das no­tí­cias, pos­sí­veis à época, pu­bli­cadas nos di­versos jor­nais), a cul­tura hu­ma­nista a que desde sempre nos ha­bi­tuou.

Cei­feira, não ceifes, não,

a li­ber­dade per­dida…

Não ceifes, cei­feira, o pão

aos que te ceifam a vida

(Carlos Inácio)

Se este livro de José Ca­sa­nova con­fi­gu­rava um im­por­tante do­cu­mento his­tó­rico/​po­lí­tico sobre Ca­ta­rina Eu­fémia, a vasta re­colha dos po­emas e can­tigas que sobre Ca­ta­rina Eu­fémia, ou a que o seu he­roísmo deu subs­tância, «O Can­ci­o­neiro de Ca­ta­rina», que in­tegra este livro é, na qua­li­dade e di­ver­si­dade dos textos re­co­lhidos, um acervo ver­da­dei­ra­mente on­to­ló­gico. José Ca­sa­nova con­se­guiu juntar, neste vasto re­po­si­tório, au­tores po­pu­lares, muitos deles anó­nimos, au­tores co­lec­tivos, como os «presos no forte de Ca­xias, nos anos 50/​60», os cam­po­neses de Pias ou os Ga­nhões de Castro Verde; a au­tores eru­ditos cuja obra nos anais da re­sis­tência é co­nhe­cida, como José Gomes Fer­reira, Sophia, An­tunes da Silva, Edu­ardo Va­lente da Fon­seca, Carlos Loures, Ur­bano Ta­vares Ro­dri­gues, Egito Gon­çalves, Ar­mindo Ro­dri­gues; ou­tros que as de­rivas da vida, ou po­si­ci­o­na­mentos di­versos, afas­taram do nosso con­vívio quo­ti­diano, como Ma­nuel Alegre ou Ar­mando Silva Car­valho; ou um belo, e ines­pe­rado, poema de Ale­xandre O’­Neill. Uma vasta, plural re­colha que en­ri­quece este livro e per­mite, na sin­gu­la­ri­dade e di­ver­si­dade das vozes que neste «Can­ci­o­neiro» se juntam, uma visão da im­por­tância, da in­fluência que a acção e o pos­te­rior as­sas­si­nato de Ca­ta­rina Eu­fémia, e o sim­bó­lico que a sua morte trá­gica re­pre­sentou na luta contra o fas­cismo, gerou por parte dos in­te­lec­tuais por­tu­gueses, dos po­etas po­pu­lares e dos cri­a­dores mais cons­ci­entes. Este livro de José Ca­sa­nova, também nessa par­ti­cu­la­ri­dade, presta um me­ri­tório ser­viço à nossa Cul­tura e ao mais fundo e pe­rene dos nossos ima­gi­ná­rios. A eles, a estes textos, se juntam, re­fe­ridas com mi­núcia, «as ruas de Ca­ta­rina» – os to­pó­nimos dos nossos afectos e ho­me­nagem.

Os olhos dos cam­po­neses

são fogos na ma­dru­gada

Mal o teu corpo tombou

a noite ficou cer­rada.


Tiros so­aram longe

no si­lêncio da cam­pina

rosa de sangue brotou

dos seios de Ca­ta­rina.


Ma­duro se faz o trigo

em terra sem ser re­gada

Quem no sangue se­meou

há-de co­lher uma es­pada


Os olhos dos cam­po­neses

são fogos na ma­dru­gada.

(Poema de An­tónio Fer­reira Guedes mu­si­cado e can­tado por Adriano Cor­reia de Oli­veira)

 

Ca­ta­rina Eu­fémia – Mi­li­tante Co­mu­nista – Mu­lher de Abril – Com­pa­nheira de Luta

de José Ca­sa­nova, Edi­ções Avante!




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